É consenso entre os analistas econômicos que a contração do nível de atividade econômica causada pela pandemia do coronavírus em conjunto com as medidas necessárias para amortecer o impacto social da mesma deverão produzir um déficit fiscal gigantesco em 2020, o que deverá levar a dívida pública como proporção do PIB para patamares próximos de 100% em 2021.
Alguns economistas se mostram preocupados com a magnitude do endividamento público brasileiro, argumentando que esse patamar poderá condenar a economia brasileira ou a uma semi-estagnação permanente ou a uma retomada do processo inflacionário na medida que irá obrigar a autoridade monetária a monetizar parte da dívida pública para reduzir assim o “peso” do endividamento. Nesse contexto, o Brasil estaria flertando perigosamente com o que poderíamos chamar de “abismo fiscal”, ou seja, com um nível de endividamento do setor público que seria insustentável no médio e longo-prazo; o que exigiria medidas draconianas de ajuste fiscal no pós-pandemia.
Mas será mesmo que existe um abismo fiscal? Primeiramente devemos deixar claro que a situação da economia brasileira em 2020 é totalmente diferente da situação prevalecente no final da década de 1970. Naquele momento o Brasil possui um elevado endividamento externo, ou seja, a dívida pública brasileira era denominada numa moeda que o Brasil não emitia, no caso em questão em dólares americanos. Atualmente a dívida pública é quase que inteiramente denominada em Reais e o governo brasileiro é credor em moeda internacional, haja vista que as reservas internacionais superam, com uma enorme margem, a dívida pública denominada em dólares. Quando a dívida é denominada na moeda em que o país emite não existe, por definição, risco de default.
A monetização da dívida pública poderia, em certas circunstâncias, produzir uma aceleração da inflação; mas isso exigiria que a economia esteja operando muito próxima do nível de plena-utilização dos fatores de produção. No horizonte de tempo previsível, contudo, a economia brasileira deverá operar com um elevado grau de ociosidade dos fatores de produção, de forma que a monetização parcial da dívida pública não deverá produzir pressões inflacionárias relevantes, ao menos enquanto o país for credor em moeda internacional.
Em segundo lugar, a experiência histórica mostra, de forma bastante clara, de que não existe um limite definido para o endividamento em moeda nacional. O gráfico abaixo, elaborada a partir de dados coletados do FRED, mostram a evolução da dívida pública como proporção do PIB no Reino Unido entre 1700 e 2016. Nesse gráfico podemos observar que durante esse período o Reino Unido apresentou uma relação dívida pública/PIB maior do que 100% em dois momentos (i) entre 1759 e 1859 e (ii) entre 1916 e 1962.
O primeiro período, de quase 80 anos, coincidiu com o advento da Revolução Industrial na Inglaterra e, por conseguinte, com a elevação desse país a categoria de maior potência econômica do mundo. A existência de uma dívida pública elevada não colocou, portanto, nenhuma limitação ao crescimento econômico do Reino Unido.
No segundo período, de 46 anos, o Reino Unido lutou duas guerras mundiais, tendo estado no lado vencedor em ambas as ocasiões. Passada a segunda guerra mundial o Reino Unido, de fato, apresentou um crescimento inferior ao observado nas demais economias desenvolvidas, mas fundamentalmente devido a restrição de balanço de pagamentos, nunca devido a restrições de natureza fiscal.

Fonte: Federal Reserve Economic Data Series. Elaboração do autor.
Em suma, o Brasil não tem porque temer uma elevação da dívida pública como proporção do PIB para um patamar próximo ou superior a 100% do PIB. O que devemos temer é a velocidade com a qual as reservas internacionais estão sendo reduzidas pela política irresponsável do Ministério da Economia que se recusa a adotar os mecanismos de controle a saída de capitais previstos nos artigos 28 e 29 da lei 4131 de 1962 e ainda vigente nos dias de hoje.
LEIA TAMBÉM
- Entre narrativas e fatos sobre a questão fiscal brasileira: uma proposta de um Novo Teto de Gastos
- A emissão de moeda é uma alternativa para reaquecer a economia pós pandemia?
- Como será o mundo depois da pandemia de Coronavírus?
- Adoção forçada da tecnologia durante a pandemia: desatino ou oportunidade?
- Investimentos: alta do dólar e a importância da diversificação de moedas
Deixe uma resposta